Luto

“O luto, via de regra, é a reação à perda de uma pessoa querida ou de uma abstração que esteja no lugar dela, como pátria, liberdade, ideal etc...”, assim escreve Freud em “Luto e melancolia”. A partir da escuta clínica de familiares que perderam seus parentes para a Covid-19 e que se encontravam internados no Hospital de Clínicas (HC) da Unicamp, pesquisadores e médicos residentes da área de Psicologia Médica e Psiquiatria da Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Unicamp escreveram um artigo sobre o luto e a morte em tempos de Covid-19.

O artigo O luto nos tempos da COVID-19: desafios do cuidado durante a pandemia foi publicado na Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental. Nele, os especialistas da FCM discutem aspectos universais e peculiares da vivência de luto no contexto dessa pandemia a partir das falas recortadas dos atendimentos e cuidados oferecidos a essas pessoas no Apoio Emocional aos Pacientes com Covid-19 e seus Familiares (APEM-Covid) do HC Unicamp.

A pandemia de Covid-19 afetou drasticamente o bem-estar socioemocional e físico de bilhões de pessoas em todo o mundo e lançou a todos a um processo de luto ou lutos. São muitas as perdas: a liberdade de circular livremente, a possibilidade de realizar reuniões, as condições de trabalho, estudo e ideia da morte, sobretudo quando o luto está relacionado à perda de um familiar ou alguém muito próximo por Covid-19”, explica a psiquiatra Clarissa de Rosalmeida Dantas.

Apoio emocional

Apoio emocional

O APEM-Covid é um serviço dirigido a pacientes internados no HC Unicamp por Covid-19 e a seus familiares. O objetivo é oferecer uma escuta acolhedora, buscando identificar e, quando possível, minimizar o sofrimento psíquico relacionado ao processo de adoecimento e internação hospitalar no contexto da pandemia. De março até o início de agosto de 2020, foram internados 418 pacientes com Covid-19 no HC Unicamp, dos quais 78 morreram.

Seguindo recomendações de distanciamento social, os atendimentos acontecem por meio de chamadas de voz e videochamadas realizadas com celulares doados pela Unicamp e tablets advindos de parceria com equipe da UTI do HC Unicamp. Essas formas não presenciais de contato também são adotadas pelo grupo para proporcionar a aproximação entre familiares e pacientes em isolamento, impossibilitados de receberem visitas.

“Cada grupo composto por paciente e familiares é acompanhado pelo mesmo profissional em atendimentos regulares ao longo de todo o período de internação e, quando necessário, após a alta hospitalar. Nos casos em que o paciente internado vem a falecer, o atendimento volta-se ao apoio emocional ao familiar enlutado ou familiares”, explica a psiquiatra Renata Cruz Soares de Azevedo.

Sentimento de irrealidade

Eu já entendi que minha mãe vai morrer, mas não quero que seja por essa doença. Não quero que seja enterrada em um saco de lixo.

Foi muito estranho. Meu pai sempre falava “quando eu morrer, vai ser um velório lotado” porque ele tinha muitos amigos, conhecia muita gente. Mas infelizmente não foi como ele pensou.

IrrealidadeDe acordo com o artigo, os familiares enlutados trazem, quase invariavelmente, com muito pesar, o fato de não terem podido realizar os rituais e cerimônias fúnebres que faziam parte de seus hábitos sociais. Isso aparece em suas falas, associada a uma sensação ou sentimento de irrealidade. Na impossibilidade de ver e tocar o corpo, essa sensação se amplia.

Outros sentimentos relatados em associação às restrições de rituais e cerimônias fúnebres giram em torno de ideias de “incompletude”, de “tarefa inacabada” ou mesmo de “missão não cumprida”, que se referem tanto às expectativas do próprio enlutado quanto aos desejos expressos em vida pelo familiar falecido, acerca das homenagens a serem realizadas.

“Ainda é cedo para avaliarmos os efeitos emocionais, no longo prazo, das alterações de rituais fúnebres durante a pandemia, mas já é bem conhecido que a ausência de tais rituais dificulta a elaboração do luto”, diz o psiquiatra Roosevelt Casorla.

Contaminação e culpa

A questão da culpa pela contaminação tem sido frequente entre os enlutados atendidos no HC Unicamp e uma fonte adicional de sofrimento, raiva e revolta. Segundo o estudo, isso tem se mostrado de forma particularmente intensa em duas circunstâncias: quando houve contágio entre familiares e havia discordâncias prévias entre os diferentes membros da família quanto ao seguimento de normas de distanciamento social e quando a contaminação ocorreu no próprio ambiente hospitalar.

A família fica toda pensando: quem passou pra quem?

Depois que ele morreu as pessoas culparam o meu irmão (falecido por Covid) por ele ter vindo visitar... Dizem que ele quem passou Covid pra todo mundo da família...

Velas

Em meio à pandemia de Covid-19, escrevem os pesquisadores da Unicamp, muitas famílias têm passado pela experiência de adoecimento, internação hospitalar e, por vezes, falecimento, de vários de seus membros em um curto espaço de tempo. A pandemia de Covid-19 trouxe mudanças drásticas nas circunstâncias que cercam a morte e o luto, deixando, só no Brasil, centenas de milhares de pessoas em condições adversas para a elaboração da perda de seus entes queridos e em risco de desenvolverem formas mais persistentes de sofrimento mental.

Empatia e tecnologia

Neste cenário, o HC Unicamp ampliou a disponibilidade e o acesso dos pacientes à rede de internet sem fio e as equipes de saúde têm estimulado os pacientes internados em isolamento a permanecer com seus telefones celulares - mesmo aqueles que estão internados em UTI, desde que estejam em condições de se comunicar - e manter contato com seus familiares.

"Temos estimulado e viabilizado a realização de videochamadas quando o paciente não consegue realizá-las por conta própria e, especialmente, quando se encontra intubado na UTI ou em cuidados de fim de vida. Em parte, é o que temos procurado ajudar os familiares em luto pré-perda ou enlutados a fazer: criar formas de contornar obstáculos e usufruir do possível, ainda que isso implique renunciar ao ideal”, diz Clarissa.

Celular

Sobre as videochamadas, alguns dos familiares relataram:

Aquele dia eu gostei que consegui ver ele… se não fosse assim não ia ver...

Eu vi e fiquei um pouco mais conformada de poder vê-lo no hospital… Tudo o que eu queria era ter estado ao lado dela. Mas se não fosse a videochamada, não teria mais visto minha mãe viva. Não tem comparação com quando se está próximo, mas para mim foi melhor que nada.

Vi no vídeo. Deu uma vontade de atravessar a câmera e abraçar ele! Só de ver já aquece o nosso coração.

De acordo com o artigo, formulações mais recentes acerca do processo de elaboração do luto tendem a enfatizar menos o rompimento de vínculos e o desapegar-se da pessoa falecida, e mais a constituição de novas e significativas formas de relacionamento, que continuam a evoluir e mudar. Dois processos complementares estão envolvidos no restabelecimento da relação, em um outro nível, com a pessoa falecida: a incorporação/identificação e a representação.

Pela identificação, a pessoa amada que morreu torna-se uma presença interna confortante, que não mais entra em conflito com a realidade externa e não mais precisa ser buscada no exterior. Pela representação, a perda é plenamente reconhecida e ao mesmo tempo se estabelece uma conexão simbólica com o falecido. A representação se dá pela recordação, pelas várias formas de representação simbólica oferecidas pela cultura, e pela combinação de recordação e representação simbólica que compõe a construção de narrativa da relação com a pessoa amada falecida e a atribuição de significado/sentido à perda.

Esperança“Temos buscado apoiar os familiares enlutados nesse processo, sobretudo através de uma escuta empática e acolhedora, mas também pelo estímulo do recurso à criatividade, ao mesmo tempo expressão de saúde e meio de recuperá-la”, diz Renata.

Clarissa de Rosalmeida Dantas, Renata Cruz Soares de Azevedo, Laura Ciaramello Vieira, Maria Teresa Ferreira Côrtes, Ana Laura Palma Federmann, Lucas da Matta Cucco, Leticia Roberta Rodrigues, Jennyfer Fernanda Rodrigues Domingues, Juliana Evangelista Dantas, Iuri Ponte Portella e Roosevelt Moisés Smeke Cassorla, autores da pesquisa, dão a última palavra a uma pessoa às voltas com seu luto no encerramento do artigo:

No enterro meu esposo pegou uma foto, imprimiu e colocou no caixão. Foi importante, a gente conseguiu sentir mais a minha mãe... Conseguimos nos despedir dela de uma maneira mais decente...


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Texto: Edimilson Montalti
Assessoria de imprensa da FCM Unicamp
Fotos: Mário Moreira e Edimilson Montalti - FCM/Unicamp e Antonio Scarpinetti - SEC/Unicamp